"ENTRE NÓS E AS PALAVRAS, O NOSSO DEVER DE FALAR" Mário Cesariny, in:Pena Capital

Sábado, 4 de Outubro de 2008
O Direito dos Animais - A matança do Porco
Consultar: www.ansiaonews.eu/08anews01/08Out04ansiaonews01.html
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Cresci com  este termo associado a uma jantarada  a que chamamos Lombada.
Junto à casa de meus pais, na traseira existia o curral dos porcos. A minha mãe guardava todos os restos da comida, e aquilo que hoje deitamos no lixo era aproveitado para a refeição destes animais, ao qual se juntavam as abóboras e as  beterrabas, as couves e alguma fruta que  não dava para comermos. Era aquilo a que a mãe  chamava de “ a lavagem”.
E lá no curral grunhiam  uma porca, que em altura certa era levada ao porco mais machão da zona, a fim de que, mais tarde aparecessem os “bacoritos”,  que um ou dois meses depois iriam reforçar o fraco rendimento doméstico, enquanto na Mealhada e arredores  se transformavam no delicioso Leitão assado à Bairrada.
Mas, com a porca ia crescendo o porquito que, na altura do Natal, estaria com o peso ideal para ser transformado nos deliciosos petiscos, “chouriços, morcelas, presuntos, paios,  fêveras, rojões, entrecostos, entremeadas, iscas, cozido à Portuguesa, feijoadas, sarrabulhos, chispalhadas” rituais da cultura alimentar que nos circunda.
E é aqui que começa o meu martírio. A Matança do animal.
Algum tempo antes passou o capador. O capador era o homem que castrava o animal, para que  a carne tivesse melhor sabor, para não saber a “barrasco” como popularmente se diz. Aparecia a tocar  pífaro, tipo flauta de pan, e era o primeiro sintoma de medo. Os mais velhotes diziam:
- Espera aí que vem aí o capador e ele  trata-te da saúde.
Nós, pequenos,  apertávamos os ditos e escondíamo-nos até o homem passar e a flauta já só se ouvir ao longe.
Mas o dia da matança chegava. O Ti Manel Ferreira, o Ti Zé Gaitas ou o Ti Melro eram normalmente os “carrascos” da zona. Conheciam bem a forma de dar a facada no sítio certo sem que o animal sofresse muito. Era o que diziam por lá.
Mas, mal eles apareciam, a minha alma ficava em profundo desânimo. Fugia, escondia-me onde não pudesse sentir aquela aflição do animal.
A banca era colocada no terraço da eira, as facas eram afiadas a preceito. O alguidar era preparado para poder receber o sangue que posteriormente serviria para as morcelas e para o sarrabulho, na nossa zona, um pitéu feito com  o sangue retalhado, guisado com batatas e outras carnes do  animal, nomeadamente, fígado, bofes, goela.
Ao lado preparava-se a fogueira que  havia de servir para depois  chamuscar o porco.
E era chegada a hora fatal. O animal começava a pressentir o que lhe estava para acontecer. Não queria sair do curral. A mãe, o pai, os homens sentenciadores lá lhe atavam uma perna com uma corda e só assim, com um chiar lancinante de pedido de socorro,  o arrastavam até à banca onde era apertado para que fosse mais  fácil a execução.
E com a faca bem aguçada, o carrasco espetava entre as pernas da frente em sítio  demarcado, para que apanhasse o coração.  E se isso não acontecia era porque o matador não tinha a experiência devida ou o animal tinha um porte demasiado grande para o comprimento da lâmina.
Os  gritos do animal eram lancinantes, que se ouviam a largas centenas de metros. As mulheres seguravam o alguidar enquanto, com a colher de pau, iam mexendo o sangue que jorrava da chaga aberta.  Pouco a pouco, os gritos do animal iam-se perdendo e iam dando lugar às ordens dos sentenciadores. Por vezes o animal ali fazia a sua última necessidade. Tudo isso era para mim uma cerimónia incrivelmente cruel e incompreensível. Mas tudo se passava com a maior das naturalidades. Era assim. Era a tradição. Ninguém pensava no sofrimento do animal. Pensava-se nas arrobas de carne, nos chouriços e na lombada.
 
E o animal foi morto. Barbaramente morto. Ritualmente morto, conforme manda a tradição.
Depois de queimado o pelo com caruma a arder sobre o corpo, era todo raspado, com facas e com pedaços de telha. Depois de lavado, era a sua barriga aberta de alto a baixo e lá apareciam as tripas, ainda com o calor do interior do animal. E tudo aquilo era agora retirado para outro alguidar, para que as tripas fossem depois levadas para a ribeira próxima, a fim de serem lavadas.
Era a altura de pesar o animal. Geralmente, 2 a 3 arrobas. Era  de seguida colocado pendurado na dispensa da casa, todo aberto, para que durante algum tempo escorresse  o resto do sangue, antes de ser todo recortado e divididas as partes a guardar na salgadeira e as outras para os enchidos.
E era este o ritual da matança do porco.
A  tradição é ainda hoje a a razão para que ninguém pense nos Direitos do Animal. A tradição faz-nos agir irracionalmente, sem termos um pouco de reflexão sobre a barbárie deste ritual quase medieval. Um porco e, segundo o que tenho lido, é um animal que sente.  É um animal doméstico que, não fosse o nome, poderia ser tão limpo como o fiel amigo, cão ou gato e tão doméstico como estes animais. Alguma vez pensaram em fazer o mesmo a um cão?  Teriam coragem?
Tenho lido, nos cartazes actuais do nosso concelho e concelhos limítrofes, um certo relevo sobre as tradições. Algumas delas  são importantes que não sejam esquecidas. Mas, a matança do porco?
Tenhamos mais respeito pelos direitos dos outros animais!


publicado por lamire às 01:03
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