Texto da Clara Ferreira Alves sobre a Europa
Os homens europeus descem sobre Marrocos com a missão de recrutar
mulheres. Nas cidades, vilas e aldeias é afixado o convite e as
mulheres apresentam-se no local da selecção. Inscrevem-se, são
chamadas e inspeccionadas como cavalos ou gado nas feiras. Peso,
altura, medidas, dentes e cabelo, e qualidades genéricas como força,
balanço, resistência. São escolhidas a dedo, porque são muitas
concorrentes para poucas vagas.
Mais ou menos cinco mil são apuradas em vinte e cinco mil. A selecção
é impiedosa e enquanto as escolhidas respiram de alívio, as recusadas
choram e arrepelam-se e queixam-se da vida. Uma foi recusada porque
era muito alta e muito larga. São todas jovens, com menos de 40 anos e
com filhos pequenos. Se tiverem mais de 50 anos são demasiado velhas e
se não tiverem filhos são demasiado perigosas.
As mulheres escolhidas são embarcadas e descem por sua vez sobre o Sul
de Espanha, para a apanha de morangos. É uma actividade pesada, muitas
horas de labuta para um salário diário de 35 euros. As mulheres têm
casa e comida, e trabalham de sol a sol. É assim durante meses, seis
meses máximo, ao abrigo do que a Europa farta e saciada que vimos
reunida em Lisboa chama Programa de Trabalhadores Convidados. São
convidadas apenas as mulheres novas com filhos pequenos, porque essas,
por causa dos filhos, não fugirão nem tentarão ficar na Europa. As
estufas de morangos de Huelva e Almería, em Espanha, escolheram-nas
porque elas são prisioneiras e reféns da família que deixaram para
trás.
Na Espanha socialista, este programa de recrutamento tão imaginativo,
que faz lembrar as pesagens e apreciações a olho dos atributos físicos
dos escravos africanos no tempo da escravatura, olhos, cabelos,
dentes, unhas, toca a trabalhar, quem dá mais, é considerado pioneiro
e chamam-lhe programa de "emigração ética". Os nomes que os europeus
arranjam para as suas patifarias e para sossegar as consciências são
um modelo. Emigração ética, dizem eles.
Os homens são os empregadores. Dantes, os homens eram contratados para
este trabalho. Eram tão poucos os que regressavam a África e tantos os
que ficavam sem papéis na Europa que alguém se lembrou deste truque de
recrutar mulheres para a apanha do morango. Com menos de 40 anos e
filhos pequenos. As que partem ficam tristes de deixar o marido e os
filhos, as que ficam tristes ficam por terem sido recusadas. A culpa
de não poderem ganhar o sustento pesa-lhes sobre a cabeça. Nas
famílias alargadas dos marroquinos, a sogra e a mãe e as irmãs
substituem a mãe mas, para os filhos, a separação constitui uma
crueldade. E para as mães também. O recrutamento fez deslizar a
responsabilidade de ganhar a vida e o pão dos ombros dos homens,
desempregados perenes, para os das mulheres, impondo-lhes uma
humilhação e uma privação.
Para os marroquinos, árabes ou berberes, a selecção e a separação são
ofensivas, e engolem a raiva em silêncio. Da Europa, e de Espanha, nem
bom vento nem bom casamento. A separação faz com que muitas mulheres
encontrem no regresso uma rival nos amores do marido.
Que esta história se passe no século XXI e que achemos isto normal,
nós europeus, é que parece pouco saudável.
A Europa, ou os burocratas europeus que vimos nos Jerónimos tratados
como animais de luxo, com os seus carrões de vidros fumados, os seus
motoristas, as suas secretárias, os seus conselheiros e assessores, as
suas legiões de servos, mais os banquetes e concertos, interlúdios e
viagens, cartões de crédito e milhas de passageiros frequentes,
perdeu, perderam, a vergonha e a ética. Quem trata assim as mulheres
dos outros jamais trataria assim as suas.
Os construtores da Europa, com as canetas de prata que assinam
tratados e declarações em cenários de ouro, com a prosápia de
vencedores, chamam à nova escravatura das mulheres do Magreb
"emigração ética". Damos às mulheres "uma oportunidade", dizem eles. E
quem se preocupa com os filhos? Gostariam os europeus de separar os
filhos deles das mães durante seis meses? Recrutariam os europeus mães
dinamarquesas ou suecas, alemãs ou inglesas, portuguesas ou
espanholas, para irem durante seis meses apanhar morango? Não. O
método de recrutamento seria considerado vil, uma infâmia social.
Psicólogos e institutos, organizações e ministérios levantar-se-iam
contra a prática desumana e vozes e comunicados levantariam a questão
da separação das mães dos filhos numa fase crucial da infância. Blá,
blá, blá. O processo de selecção seria considerado indigno de uma
democracia ocidental.
O pior é que as democracias ocidentais tratam muito bem de si mesmas e
muito mal dos outros, apesar de quererem exportar o modelo e estarem
muito preocupadas com os direitos humanos. Como é possível fazermos
isto às mulheres? Como é possível instituir uma separação entre
trabalhadoras válidas, olhos, dentes, unhas, cabelo, e inválidas?
Alguns dos filhos destas mulheres lembrar-se-ão. Alguns dos filhos
destas mulheres serão recrutados pelo Islão. Esta Europa que presume
de humana e humanista com o sr. Barroso à frente, às vezes mete nojo.
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