"ENTRE NÓS E AS PALAVRAS,
O NOSSO DEVER DE FALAR"
Mário Cesariny, in:Pena Capital
Ontem, dia 10, dia de Portugal, se Alçada Batista não tivesse falado na incoerência da letra do nosso Hino, quase que o dia passaria despercebido nalguns jornais de hoje.
Com efeito admiro-me como muitos políticos vieram manifestar-se dizendo que a letra não tem importância.
Aliás, melhor dizendo, não me admira nada, porque neste País quase tudo é faz de conta que...
·Faz de conta que há trabalho...
Muita gente anda a fazer de conta que trabalha, mas a vontade é nitidamente nula. Outros trabalham, mas não têm emprego, aliás, até constam como desempregados, ou quiçá nem constam nas listas de nada.
·Faz de conta que está tudo bem...
Por aqui não há pobreza, a miséria acabou com o subsídio social. No entanto dá-se com uma mão e retira-se com as duas. O imposto mínimo obrigatório a cobrar já este mês (artº 60 do CIVA) no valor de 50 contos e em Novembro outros 50 não é aumento de imposto, não senhor. As pessoas de aldeia, com pequenas vendas que muitas vezes só abrem ao Domingo antes e depois da missa, e que lá iam sustendo a sua vida, guardando alguns tostões para darem aos netos pelo Natal ou pelos anos, vão agora ter que subsidiar o subsídio social e quiçá as festas da Expo 98. Mas faz de conta que não há aumentos de impostos.
·Faz de conta que temos políticos altamente credenciados...
Se lá fora há eleições antecipadas, há que aproveitar esta genial ideia e fomentá-la por cá.
Se alguém lá fora fala em acabar com o desemprego, pois que é uma óptima ideia falarmos disso cá também, como se não fosse a ideia que nos deveria preocupar a toda a hora.
Os nossos políticos andam sempre a fazer de conta que são políticos, e à espreita de lá fora surgir uma ideia genial para poderem passar o tempo. É que os problemas de cá não são para resolver, são para se irem resolvendo. Veja-se o caso das 40 horas que já leva novela de 6 meses. Ainda há-de sobrar para o ano que vem!
·Faz de conta que a Indonésia é nossa inimiga!
Pois é, mas vamos comprando o que eles fabricam, como por exemplo as peças desta máquina impressora HP, e vamos deixando que os nossos amigos lhes vão vendendo os “rebuçados” com que eles se entretêm a fazer desaparecer os Timorenses, e vamos comprando e negociando com os que exploram o petróleo do mar de Timor, os nossos amigos da SHELL. Claro que faz de conta que está tudo bem.
·Faz de conta que somos cultos...
É evidente que a letra do Hino não interessa. E não interessa porque não interessa que a gente pense. Eu fui combatente em Angola. Já nesse tempo, fui porque tinha que ir. Não deveria pensar porquê. Era isso que me impunham. Também antes de embarcar cantei o Hino, certamente, motivado pela instrução em Mafra, com alguma convicção. Os políticos não querem que a gente pense. É preciso a paz?! Sim sim, mas se a gente puder continuar a vender as nossas G3 e outras armazitas que se lixe a paz! Contra os canhões!
Não querem que a gente pense. O importante é estar direito e respeitar a cerimónia. Os outros países também têm o seu hino. Por tanto nós temos de fazer de conta que também. Nas canções Pimba é a mesma coisa. A letra não importa, o que importa é a cerimónia, isto é, dar ao pé, saltar um pouco, soar, e ir com as damas ao bufete.
É claro que nisto de letras as únicas importantes são as do banco!
Fernando Pessoa é importante! Quantos Portugueses conhecem e estimam a sua obra? E quantos Portugueses já leram a obra de A. Bessa Luís, ou mesmo só a Sibila? E até, quantos conhecem a obra de Camões? Se o ex Primeiro nem sabia quantos cantos tinha os Lusíadas!!! Mas fazemos de conta que somos todos cultos. Isso é que importa.
É evidente que há coisas mais importantes que isto do Hino. Não sei que motivo levou Alçada Batista a pôr este problema. Ainda bem que o pôs. Há alguns anos já eu tinha escrito ao Presidente da Rep. Dr. M. Soares sobre este problema, apresentando até uma alternativa. Não com a intenção que alguma vez fosse alternativa, mas porque o fiz e me deu prazer fazê-lo, da mesma forma que não tenho prazer nenhum em cantar Às armas! Há pouco tempo, enviei à TSF um artigo sobre esse assunto, e já em Fev. de 1996 tinha falado desse assunto com alguns partidos. Alguns responderam-me, e nunca tive alguém que não me desse razão. Eis, por exemplo a carta que o PP me enviou na altura, e que vos envio em fax.
Mas isto sou eu a fazer de conta que isto tem alguma importância.
E o importante nisto tudo é que, infelizmente, no que conta a faz de conta, só uma coisa temos certa de que não faz de conta, porque contas são contas e com os impostos não se brinca!
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Ao sabor da pena
ASimões
11.6.97